“As origens do mutualismo agrícola”

 

As origens do mutualismo agrícola em Portugal remontam ao século XVI, reinava D. Sebastião, altura em que surgiram e se institucionalizaram os Celeiros Comuns, estabelecimentos geridos por eclesiásticos e por responsáveis municipais que concediam crédito (em espécie) à lavoura. Os Celeiros emprestavam (principalmente) sementes e recebiam, depois, o “capital” e o respectivo “juro” em géneros, quando o agricultor necessitado efectuava a colheita seguinte.

O sistema funcionou durante três séculos, vindo a ser substancialmente alterado em 1862, data a partir da qual tanto os empréstimos como a sua liquidação deixaram de efectuar-se em géneros. As sucessivas subidas das taxas de juro, que dificultavam o recurso ao crédito, provocaram uma gradual diminuição da importância dos Celeiros Comuns, extintos logo após a implementação da República. Ainda no século XIX, surgiu, em 1864, o crédito fundiário, pela mão da Companhia Geral do Crédito Predial Português, que concedia empréstimos sobre hipotecas rústicas e urbanas. Uma lei de 1866, por outro lado, concedeu às Misericórdias e outras instituições de carácter social a possibilidade de formarem bancos a nível local, habilitados a realizar operações de crédito agrícola e industrial. No ano seguinte (2 de Julho de 1867) foi publicada a primeira lei de organização das sociedades cooperativas (que veio a ser conhecida por Lei Basilar do Cooperativismo Português), legislação que previa e regulava a constituição de cooperativas de crédito.

Já no reinado de D. Carlos, a Carta de Lei de 3 de Abril de 1896, considerava a lei base do associativismo agrícola, previa expressamente a criação de Caixas de Crédito Agrícola, no âmbito dos Sindicatos Agrícolas. Foi ao abrigo desta lei, inspirada no modelo francês, que surgiram em Portugal as primeiras Caixas Agrícolas. O diploma afirmava logo no seu Artigo 1º: “É permitida aos agricultores e aos indivíduos que exerçam profissões correlativas à agricultura a fundação de associações locais, com a denominação de Sindicatos Agrícolas, tendo por fim principal estudar, defender e promover tudo quanto importe aos interesses agrícolas gerais e aos particulares dos associados”.

Poucos meses após a implementação da República, em 1 de Março de 1911, o Governo Provisório de Teófilo Braga aprovou um decreto que organizou o crédito agrícola através das Caixas de Crédito Agrícola Mutuo e cujo conteúdo perdurou, no essencial, até 1982.

O diploma, considerado de autoria de Brito Camacho, ministro do Fomento, como que inverteu o estipulado na Carta de Lei de 1896, no que respeita à relação Sindicatos Agrícolas-Caixas de Crédito Agrícola. Estas deixavam de se constituir “no âmbito” dos sindicatos, ganhando, portanto,”carta de alforria”, mas eram obrigadas a ter “a seu lado” o “componente sindicato” – “Nenhuma Caixa de Crédito Agrícola Mutuo se poderá organizar ou funcionar sem que seu lado esteja constituído e trabalhando o competente sindicato”, determinava a lei, acrescentando, ainda, só poderem ser sócios os agricultores que “se achem inscritos como sócios do sindicato funcionando na mesma região”. Os sindicatos agrícolas perderam com esta lei a possibilidade (que detinham desde 1896) de efectuar operações de crédito.

O decreto de Brito Camacho, também ele inspirado no modelo francês de crédito agrícola, juntou a componente privada e mutualista das Caixas Agrícolas, à pública, ao subordiná-las à tutela governamental, através da Junta de Crédito Agrícola, integrada no Ministério do Fomento. O diploma determinou, por outro lado, a canalização através das Caixas dos fundos públicos para o fomento agrícola. Refira-se, como curiosidade, que o decreto de 1911 previa a criação de uma Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo que, quando constituída funcionaria em Lisboa. Foi preciso esperar por 1984 para que ela surgisse, já que os requisitos impostos na lei para que tal pudesse verificar-se nunca se concretizaram (criação de Caixas Distritais).

Em 30 de Junho de 1914, o Congresso da República deu força de lei ao decreto de 1911, mantendo no essencial todo o articulado de Brito Camacho. Cinco anos depois, 8 de Janeiro de 1919, um novo decreto, considerado fundamental na estrutura jurídica do Crédito Agrícola Mútuo, regulou, ao longo de 773 artigos, as Caixas Agrícolas de forma pormenorizada. Manteve-se até 1982.

A legislação sobre a matéria continuou, nos anos seguintes, a regulamentar as actividades das Caixas. Destaque para os dois diplomas publicados em 1925. Um decreto de 20 de Março regulou o sistema bancário, que teve naturalmente reflexos na actividade do Crédito Agrícola; um outro, de 22 de Julho criou e regulamentou a Caixa Geral de Crédito Agrícola, extinguindo a Direcção Geral do Crédito e das instituições Sociais Agrícolas, que até aí havia tutelado as Caixas.

Em 1926, um novo decreto (de 25 de Junho), determinou a separação definitiva das Caixas de Crédito Agrícola Mútuo dos Sindicatos Agrícolas. Isto por se considerar que tal “associação” legal havia sido limitativa da expansão das Caixas e, nalguns casos, havia, mesmo, conduzido ao seu encerramento. O mesmo diploma determinou também a passagem das Caixas a estabelecimentos de utilidade pública.

Oliveira Salazar, ministro das Finanças da Ditadura, extinguiu a Caixa Geral de Crédito Agrícola ao criar, em 27 de Março de 1929 a Caixa Nacional de Crédito integrada na Caixa Geral de Depósitos, entidade que, de acordo com os princípios centralizadores que caracterizaram a sua actuação, primeiro como ministro e, depois, como chefe do Governo, passou a tutelar as Caixas de Crédito Agrícola Mútuo. De acordo com o decreto publicado naquela data, a Caixa Nacional de Crédito centralizou todos os serviços e operações do Estado directamente relacionados com o crédito agrícola, industrial e outros.

Em pleno Estado Novo, a intervenção do Governo nas Caixas de Crédito Agrícola Mútuo acentuou-se ainda mais claramente a partir da publicação do decreto /17 de Outubro de 1939) que previa “em casos de reconhecida urgência que [ a Caixa Nacional de Crédito ] considere devidamente informados e justificados, substituir as direcções das Caixas de Crédito Agrícola Mútuo por comissões administrativas de sua escolha”. Ainda que o preâmbulo do diploma afirmasse que a medida não pretendia “limitar a autonomia” das Caixas, mas, antes, acorrer a situações de gestão deficiente, é óbvio que o articulado permitia uma intervenção discricionária do poder político, mantendo permanentemente sobre as direcções das Caixas – democraticamente eleitas – o “cutelo” da intervenção arbitrária do Governo.

Não espanta. Assim, que a expansão do mutualismo agrícola tenha sofrido um forte abalo. Se entre 1911 e 1929 haviam surgido em todo o País cerca de 140 Caixas de Crédito Agrícola Mútuo, no longo período de 1930 a 1974 o saldo entre as que foram criadas e as que foram dissolvidas situa-se em apenas cerca de 40.

Após o 25 de Abril de 1974, particularmente entre 1978 e 1982, foram constituídas mais 32 Caixas, resultado das expectativas geradas com a hipótese da extinção da tutela por parte da Caixa Geral de Depósitos. Tal feito prolongar-se-ia, aliás durante toda a década de 80.

A Federação Nacional das Caixas de Crédito Agrícola Mútuo (Fenacam) foi constituída em 1978, desempenhando a partir daí papel de relevo no processo de autonomização do sector.

Em 1982, as Caixas de Crédito Agrícola Mútuo passaram, por decreto de lei de 17 de Junho, a ser tuteladas pelo Banco de Portugal, em condições semelhantes às demais instituições de crédito. Cessou, assim, a dependência da Caixa Geral de Depósitos (que integrara, em 1969, a Caixa Nacional de Crédito).

Dois anos depois (20 de Junho de 1984) constituiu-se, finalmente, por escritura pública, a Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, concretizando – ainda que com um enquadramento bastante alterado – o previsto no decreto de Brito Camacho, redigido 73 anos antes.

Já na década de 90, um novo decreto lei (11 de Janeiro 1991) institucionalizou o Sistema Integrado do Crédito Agrícola Mútuo (SICAM), constituído pela Caixa Central e pelas Caixas Associadas (a do Bombarral e quatro outras não o integraram). O diploma, que prevê a liberdade de associação das Caixas à Caixa Central, atribui a esta, funções e poderes em matéria de representação do SICAM, bem como de orientação, fiscalização e, se necessário de intervenção na gestão das Associadas. A criação do SICAM teve, entre os seus objectivos principais, o de isentar as Caixas de alguns requisitos impostos pela Directiva de Supervisão Bancária da Comunidade Europeia.

Existiam em actividade 140 Caixas de Crédito Agrícola Mútuo, das quais 135 faziam parte do SICAM. As cinco restantes estavam fora do Sistema (Bombarral, Chamusca, Mortágua, São Bartolomeu de Messines e Vila Franca de Xira), agrupadas na Crediagrícola.